a história do clube do choro
Brasília, 10 de novembro de 1956. O presidente Juscelino Kubitschek inaugura o primeiro prédio oficial da cidade: o Catetinho, casa de madeira projetada por Oscar Niemeyer e que serviria de residência provisória do chefe do governo até sua mudança para o Palácio da Alvorada, em 1960. Na comitiva, além de parlamentares, jornalistas e assessores, uma presença revela a paixão de JK pela música popular brasileira: o violonista Dilermando Reis, chorão, seresteiro e autor de Exaltação a Brasília, canção composta em homenagem à cidade que começa a sair do chão. Pelas cordas do violão de Dilermando, o choro e a seresta ecoam na noite estrelada do Planalto Central, quando a nova capital ainda não passa de um sonho.
Rio de Janeiro, novembro de 1967. Jacob do Bandolim está praticamente entrevado na cama de sua casa em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, vítima de uma crise de coluna cervical, e recebe a visita de dois médicos vindos de Brasília. Na verdade são dois chorões, que pretendiam assistir a um dos lendários saraus realizados por Jacob e foram surpreendidos pela situação. Um deles de fato é médico e decide submeter o doente a uma terapia neural que aprendeu recentemente na Alemanha. O outro, advogado, apresenta-se como “ginecologista” e ajuda o amigo no preparo da injeção. Para surpresa da família, no dia seguinte Jacob pula da cama, de onde não saía há quatro meses, e volta a tocar bandolim. Mais: fica tão entusiasmado com a própria recuperação que resolve prosseguir o revolucionário tratamento em Brasília.
Durante os seis meses em que Jacob do Bandolim morou na Capital da República, sua presença atraiu muitos chorões transferidos para Brasília na condição de funcionários púbicos. Assim como fazia em Jacarepaguá, todos os sábados ele reunia os melhores instrumentistas da cidade para saraus memoráveis, que resultaram na formação do “Época de Prata” (no Rio ele já tinha o “Época de Ouro”), regional que passou a acompanhá-lo. A fama do grupo se espalhou, choveram convites e até o presidente Arthur da Costa e Silva quis uma apresentação exclusiva no Palácio da Alvorada. Jacob morreu duas semanas depois de regressar ao Rio de Janeiro, mas sua passagem por Brasília, para onde pretendia voltar, deixou plantada a semente do Clube do Choro.
Brasília, 9 de setembro de 1977. O Clube do Choro de Brasília é fundado por músicos que se reuniam na casa da flautista francesa (naturalizada brasileira) Odete Ernest Dias. O citarista Avena de Castro, grande amigo de Jacob do Bandolim, é eleito por aclamação o primeiro presidente. Fazem ainda parte do grupo Pernambuco do Pandeiro, que tocou com Carmen Miranda; o flautista Bide, primo de Pixinguinha; o trombonista Tio João, da Orquestra da Rádio Nacional; o bandolinista Arnoldo Veloso, médico que aplicou a terapia neural em Jacob; seu amigo cavaquinista e boêmio Assis Carvalho (o “ginecologista”) e outros 23 instrumentistas, jornalistas e apreciadores do choro. O então governador do Distrito Federal, Elmo Serejo, cede o vestiário do recém- inaugurado Centro de Convenções para as reuniões musicais.
Embora não participe diretamente da criação do Clube, o mestre do cavaquinho Waldyr Azevedo, considerado o instrumentista mais popular do país, vivia há anos em Brasília. E resolve retomar a carreira interrompida pelo trauma da morte de uma filha, entusiasmado com a movimentação em torno do Choro. O gênero centenário faz sucesso na cidade mais moderna do Brasil. Mas após um início promissor, com a incorporação de jovens músicos da cidade e um período de intensa atividade, o Clube entra em decadência. A precariedade das instalações do antigo vestiário, os repetidos furtos do equipamento de som, o rompimento do sistema de esgotos, a falta de estrutura para a apresentação dos músicos e o desconforto da plateia acabam por afastar o público e os próprios chorões. O local fica abandonado por quase uma década e o Clube do Choro, ameaçado de despejo, torna-se abrigo de desocupados.
Nessas circunstâncias, foi eleita em 1993 a diretoria presidida pelo jornalista Henrique Lima Santos Filho, o Reco do Bandolim. Depois de interromper o processo de despejo, ela conseguiu dois anos depois a regularização da sede. E partiu para a recuperação do espaço físico através de um projeto do arquiteto Fernando Andrade, autorizado pelo próprio Oscar Niemeyer e executado pelo governo local. Artistas de renome, como o violonista Raphael Rabello e o bandolinista Armando Macedo, fizeram shows na sala Villa-Lobos do Teatro Nacional sem cobrar cachê, com a renda revertida para as obras de revitalização do Clube.
Com a conclusão da reforma, em 1997, a diretoria do Clube do Choro de Brasília começou o trabalho de reaglutinação dos músicos e admiradores do gênero. Ao mesmo tempo, apresentava ao Ministério da Cultura projetos anuais temáticos, o primeiro deles em homenagem ao centenário de nascimento de Pixinguinha. A proposta obteve o beneficio da Lei do Mecenato, permitindo a adesão de patrocinadores que viabilizaram a contratação de músicos da cidade e também de outros centros para apresentações semanais. Uma pequena estrutura de produção foi montada, tendo em vista a divulgação do projeto e o resgate da credibilidade junto ao público, afastado há longo tempo. A sede abrigava ainda exposições permanentes sobre os compositores homenageados, além de discoteca e videoteca de música instrumental brasileira.
Desde então o Clube do Choro de Brasília vem trilhando um caminho de sucesso crescente. Com espetáculos veiculados para todo o País através de TVs públicas, consegue atingir milhões de telespectadores. O Clube mantém uma parceria estratégica com a Escola de Choro Raphael Rabello, a primeira do gênero no país, onde mais de mil alunos, de oito a 80 anos, aprendem a tocar cavaquinho, bandolim, pandeiro, violão, saxofone, flauta, acordeon, gaita, violino e viola caipira.
O Clube e a Escola funcionam hoje lado a lado, no mesmo prédio de dois mil metros quadrados de área construída projetado por Oscar Niemeyer e inaugurado em 2011, formando o Espaço Cultural do Choro. Com 42 anos, sem qualquer filiação ideológica, política ou partidária, o Clube se orgulha de ser uma instituição-referência essencialmente voltada para a cultura. Não apenas cria novas plateias para o Choro, como desenvolve o projeto de música instrumental brasileira mais duradouro e bem sucedido da história da MPB, alcançando a marca histórica de 2.500 shows, assistidos por uma plateia de 750 mil pessoas. Revitalizado e permanentemente atualizado por novas gerações de músicos, o Choro feito em Brasília percorre os cinco continentes, despertando o interesse e a curiosidade de universidades, escolas e festivais pelo mundo inteiro. Clubes do Choro ou instituições similares se espalham pelo Brasil e até em Paris já existe um. É a cultura brasileira, muitas vezes sem espaço dentro do próprio país, reafirmando sua força, riqueza e originalidade. Por essa a globalização não esperava…